onde eu assino?

marcela teodoro
3 min readMay 9, 2021

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isso não é amor, mas também não significa que desamor é a palavra chave. tampouco indiferença. a questão é que nesse contrato não contém amor. foi o que a gente combinou. e eu li todo o contrato antes de assinar, o que é um pouco estranho porque eu sempre aceito termos e condições sem ler uma linha sequer. mas o nosso contrato eu fiz questão de ler inúmeras vezes, com direito a notas de rodapé e tudo mais.

então ficou assim: a gente combinou que nada disso é amor. nem os beijos calorosos, nem os abraços noturnos ou os pés gelados que se procuram na madrugada. e nem será — não tem motivo pra ser.

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é claro que às vezes é estranho entender que isso tudo não significa nada pra nós porque às vezes o seu nome sai da minha boca num tom mais ameno e seus braços quando se encontram com os meus têm formato de lugar seguro. às vezes parece que o amor está no ar, mas a sorte é que a gente sabe que isso não significa que ele está dentro de nós.

a gente faz algumas coisas que casais fazem, mas sei lá, amigos também podem fazer a maioria delas. aqui existe amizade, afinal, né? acho que não tem nada demais em decorar todas as suas manias ou esperar você acordar com o cabelo todo bagunçado e me dizer “bom dia” com a voz frouxa e rouca emendando num pedido de café da manhã no final de semana.

é claro que não é sobre isso quando você vira as costas pra ir embora e, depois de alguns segundos, examina os móveis da casa e minha cama pra ver se não tá esquecendo nada… às vezes dá vontade de dizer que você tá esquecendo sim, só pra você ficar um pouco mais. ou dizer que não, que tá tudo certo, só pra ter um motivo pra você voltar depois. mas eu juro de dedinho que isso não é sobre amor.

eu sei que você não vai acordar numa manhã de domingo e dizer que quer ser minha, eu sei. e, no fim das contas, acho que tá tudo bem. a escolha de correr esse risco é minha, e eu acho que já tinha aceitado me arriscar mesmo sem saber que um dia você não mais vai me querer.

no contrato tá escrito que não vai ser amor. quando eu pego no mercado o seu chocolate preferido e você me lembra de pegar alguma bebida que faz mal pro estômago — e que ainda assim eu gosto de beber — é só força do hábito.

você já decorou como organizar meus armários e sabe as cores de todas as minhas camisetas e não hesita em pegar minhas meias na primeira gaveta. mas isso não é sobre intimidade e se isso ficar íntimo demais de um jeito muito singular a gente pode fazer alguma piada sexual pra quebrar o sentimentalismo.

o contrato diz que não é amor mas também não diz o que é. e a gente continua fazendo isso porque talvez seja melhor do que não ter nada pra fazer ou coisa do tipo. a rotina é meio entediante e é claro que um cafuné no meio da semana sem nenhum compromisso é bom.

eu não sei quando você vai decidir ir embora, mas a gente assinou esse contrato de tempo indeterminado e tá tudo bem. não é amor, mas talvez seja algo tão legal quanto. não é sobre nada eterno, mas sobre ser bom enquanto durar. tava tudo no contrato. e eu assinei. se for preciso assino mais uma via, só pra garantir.

contratos são tão burocráticos, e a gente quer evitar essas burocracias. cravamos que isso não é sobre amor e ponto final. e esse texto é só pra lembrar que, ainda que nada disso seja sobre sentimentalismo ou sobre amor, o mundo fica menos bobo quando você tá por perto. e todas aquelas outras meninas ficam meio , meio sei lá, meio sem sal e sem graça. você não é minha, nem eu sou sua. ninguém, no fim das contas, nunca é de ninguém.

e é por ser livre que, por conta e risco, gosto de me segurar em você, mesmo que seja um pouco, mesmo que seja por pouco. e, se você quiser, a gente vai renovando o contrato sem incluir novos termos.

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